JAILDO MARINHO

Jangada Brasil

Obra comissionada pelo TCU como símbolo do INCOSAI 2022 foi inaugurada no Pão de Açúcar e integra a sua coleção pública, a ser exposta de forma permanente em Brasília.

A integração de sua obra em mais um acervo público no Brasil é um marco na produção de Jaildo Marinho, que muito jovem fixou-se na França, onde vive e trabalha.

A JANGADA: SÍMBOLO DO BRASIL 

Se os portugueses que colonizaram o Brasil, em vez de escolherem o nome de um tipo de madeira para designar o lugar, tivessem elegido o resultado do labor que metamorfoseia a madeira em um meio de navegação, talvez o Brasil se chamasse Janga ou Jangada e os nascidos no país fossem chamados de jangadeiros. 

Entretanto, não é preciso ir muito longe no raciocínio para pensar que a jangada pode ser o grande símbolo do Brasil. Mais do que o ouro, as selvas, os céus azuis traduzidos nas cores de sua bandeira. O lema “Ordem e progresso” pode positiva ou “positivisticamente” ter uma tradução perfeita na jangada, no jangadeiro, no pescador. No esforço e no resultado, no progresso nas águas, onde é preciso navegar e onde viver deve ser também preciso, obedecer a uma “ordem” e, afinal, tantas vezes, ser o resultado em precisão. Entendida tal palavra com o significado de necessidade e de exatidão. 

Foi isso o que aconteceu, por exemplo, há 80 anos. A jangada fora batizada de São Pedro, o santo por excelência dos pescadores, como é o peixe o símbolo do Cristianismo. Do país mais cristão, quantitativamente, no mundo. 

Em 1942, quatro pescadores cearenses decidiram fazer uma viagem numa jangada de vela. De Fortaleza ao Rio de Janeiro. O destino era o palácio do Catete, para apresentar suas reivindicações ao presidente Getúlio Vargas. 

A impressionante disposição dos jangadeiros inspirou o cineasta Orson Welles, que realizou o documentário Four Men on a Raft — que nunca chegou a concluir. Desse filme, é a famosa Suíte do pescador, de Dorival Caymmi, que inclui estes versos tão cantados e recantados ao longo das gerações: 

Minha jangada vai sair pro mar.
Vou trabalhar, meu bem querer.
Se Deus quiser quando eu voltar do mar

um peixe bom eu vou trazer.
Meus companheiros também vão voltar
e a Deus do céu vamos agradecer.

A jangada, como se deduz desses versos, e de tudo o que representa no imaginário coletivo, é uma síntese do Brasil. Da sua fé, da sua afetividade, da sua capacidade de trabalho e de superação das adversidades. A busca da prosperidade, da bonança, de ventos e marés favoráveis.

A jangada é tão importante no Brasil que poderíamos cair na tentação de pensar que todas as embarcações são jangadas. Embora a necessidade e o prazer de navegar sejam algo intrinsecamente humano desde o início da humanidade, houve e há enormes quantidade e variedade de meios e instrumentos para fazê-lo. Alguns povos, como os fenícios, destacaram-se nisso. De tal maneira que muitos acreditam que os fenícios e outros povos grandes navegadores chegaram ao Brasil e às outras Américas muito antes dos portugueses. A famosa escultura Vitória de Samotrácia, exposta no Louvre, integrava originalmente uma fonte com a forma da proa de uma embarcação. Portanto, é correto pensar que, quando um artista contemporâneo faz representar no mármore, ou em qualquer outro material, a jangada está evocando ou invocando, ou irmanando-se a Niké tes Samothrakes. Ou, no mínimo, mostrando que é parte da imensa fraternidade dos escultores, como é a jangada uma integrante da fraternidade de todas as embarcações.

O poeta Fernando Pessoa, que, nas suas palavras do pórtico, repetiu uma “frase gloriosa” dos navegadores antigos — “Navegar é preciso” —, escreveu outra, própria, sua: “Existem portos para todos os barcos”. Esta frase pode ser lida às avessas por nós, como se estivesse fixada nas águas: existem barcos para todos os portos. E, entre esses “barcos”, estão as balsas, as jangas, as embarcações que navegam no rio São Francisco, no Brasil, inclusive aquelas das carrancas. Carrancas, ou seja, esculturas de madeira postas na proa e nas quais entendem os estudiosos que cumprem uma função protetora. Câmara Cascudo as denomina “gárgulas brasileiras”. Ele não se limitou a explicar as carrancas: dedicou à jangada todo um livro.

Mas, afinal, o que é uma jangada? Para responder à pergunta, nada melhor do que a explicação que está no Dicionário marítimo espanhol: “Balsa usada no Brasil e composta de troncos de árvores fortemente reunidos. Sua popa é quadrada e sua proa, angular, sendo o mais saliente o tronco no meio; leva um pau e uma vela. Emprega-se nos rios especialmente, ainda que haja as de pesca que saem ao mar e têm cerca de 40 pés de largura”.

A descrição de como é feita e está composta a jangada basta para entender que se trata mais do que um símbolo sociológico ou econômico. É um poderoso conjunto de signos geométricos. Perfeitos para reinvenções em pinturas e esculturas. Um exemplo é o Monumento ao jangadeiro, do artista Sérvulo Esmeraldo, na beira-mar de Fortaleza. Na arte popular, os exemplos se multiplicam às centenas, aos milhares.

Mais do que o papagaio, que chegou a ser um dos nomes populares do Brasil nos tempos coloniais e ainda é usado como reiteração de estereótipo e exotismo, é a jangada o melhor símbolo do Brasil. Melhor que o símbolo natural, o cultural. E até mais do que do Brasil, da união dos povos ibéricos. Da Espanha com Portugal e todos os países que derivaram dos seus contatos, especialmente os das Américas. Isso está muito bem retratado no romance A jangada de pedra, de José Saramago.

A jangada de Francisco José do Nascimento, o “Dragão do Mar”, é considerada um símbolo vivo da luta contra a escravidão. Esses e outros muitos exemplos têm força substantiva e, no conjunto, justificam bem como e por que a jangada é uma síntese do Brasil e dos brasileiros, de todos os brasileiros, e não apenas dos jangadeiros, de todos os brasileiros, e não apenas dos que vivem na costa do país, “gigante pela própria natureza”.

Mario Helio Gomes é crítico e historiador da arte, escritor, editor, diretor da Diretoria de Memória, Educação, Cultura e Arte da Fundação Joaquim Nabuco, doutor em antropologia da Universidade de Salamanca (Espanha) e autor do livro Cicero Dias – uma vida pela pintura, entre outros trabalhos sobre arte e artistas. 

Mário Hélio